Dilma Roussef, Marina Silva e Cármen Lúcia foram educadas em colégios de freiras
ELIANE CANTANHEDE
A eleição do papa Francisco fez muita gente lembrar que o Brasil é o maior país católico do mundo, pelo menos da boca para fora. E as mulheres que chegaram ao poder no Executivo, no Legislativo e no Judiciário vieram de... colégios de freiras.
O exemplo maior é Dilma Rousseff, 65, mineira de nascimento e gaúcha por adoção, que estudou nos colégios Sion e Santa Doroteia, de Belo Horizonte, lutou contra a ditadura, foi presa, torturada e virou a primeira mulher a presidir o Brasil.
A educação era rigorosa, tinha até latim. Mas, aos domingos, Dilma subia o morro do Papagaio com as freiras para ensinar regras básicas de higiene para os moradores da favela. Era o GGN (Grupo Gente Nova), que operava ali a doutrina social da Igreja Católica posteriormente expressa no Concílio Vaticano 2º, conduzido pelo papa João 23.
O hábito das guerreiras
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Da esq. para a dir.: Dilma Housseff, Gleisi Hoffmann, Cármen Lúcia, Eliana Calmon e Marina Silva; algumas das mulheres mais fortes da política atual foram educadas em colégios de freiras, onde aprenderam a fazer o oposto do que fizeram com suas vidas
"A primeira favela que vi na vida, eu fui levada pelas freiras do Sion. Foi uma semente para a minha consciência social", disse Dilma à Serafina. Dali, ela pulou para o Colégio Estadual e para a militância política e fez sua trajetória fulgurante até subir a rampa do Planalto.
Chefe da Casa Civil de Dilma, a ministra Gleisi Hoffmann, 47, saiu do colégio Nossa Senhora da Esperança, em Curitiba, para um partido comunista e a resistência à ditadura militar.
Com uma diferença: o pai impediu que ela seguisse a vida religiosa. "Quase virei freira", diz ela, que frequenta missas e faz meditação - já foi até a Índia para isso.
Gleisi aproveitava os dias de oração na capela, na casa das freiras, para dar um jeito de comer com elas. "Eu adorava o almoço das irmãs", relembra.
Foi o oposto com a mineira Cármen Lúcia, 58, ministra do Supremo Tribunal Federal e primeira mulher a presidir o Tribunal Superior Eleitoral (TSE): interna no Sacre Coeur de Belo Horizonte dos 12 aos 17 anos, tinha pavor da comida.
"Nunca como arroz. É trauma do colégio porque o arroz era horrível, uma papa insuportável", diz ela, confessando que esses anos não foram os melhores de sua vida.
"Não fui feliz por causa da ausência de liberdade", explica, admitindo outro trauma: "Era sininho para tudo. Para acordar, para fazer fila, abrir o chuveiro, fechar o chuveiro. Até hoje não suporto ouvir sininho".
Dilma, Gleisi e Cármen Lúcia fizeram bom uso da educação em colégios de freiras, então exclusivos para meninas: tiveram excelentes professoras, aprenderam línguas e atribuem seu rigor e disciplina a esse tempo.
Todas trabalham muitas horas por dia. Cármen Lúcia acorda às 5h30 da manhã até aos domingos e, não raro, passa dias trancada em casa lendo processos e redigindo votos.
Se as freiras imaginavam que as "moças de família" seriam boazinhas e cordatas, erraram feio. "Podem escrever o que quiserem na minha lápide, menos que eu era boazinha", ri a ministra que, no Supremo, participou do julgamento do mensalão do governo Lula.
Outra ministra de fibra que passou por bancos escolares conduzidos por freiras foi Eliana Calmon, 68, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que deu o que falar como corregedora nacional de Justiça. Com enorme coragem e sem papas na língua, admite que foi "duríssima" com os juízes que não se levam a sério.
Baiana, mais velha de três filhos, foi uma aluna exemplar do Colégio Nossa Senhora da Soledad, em Salvador, mas era atrevida e dava uma canseira nas freiras: muito alta, se recusava a ser a última da fila e roubava pitangas no jardim.
CROCHÊ, BORDADO E PINTURA
A primeira governadora eleita do país, Roseana Sarney, 59, filha do ex-presidente da República José Sarney, não escapou do colégio de freiras. Virou deputada e senadora e está em seu segundo mandato no governo do Maranhão.
Aluna do Sacre Coeur de Marie, em Brasília, era boa na aula de declamação. "Isso foi útil pelo resto da minha vida", diz. Só levava na galhofa a obsessão com a
hierarquia. Sempre que encontravam uma freira, as meninas tinham de cumprimentá-la em francês, com um pé na frente do outro, mãos unidas e reverência com a cabeça.
hierarquia. Sempre que encontravam uma freira, as meninas tinham de cumprimentá-la em francês, com um pé na frente do outro, mãos unidas e reverência com a cabeça.
Ao contrário de Roseana, que considera sua escola "bastante avançada", a subprocuradora Sandra Cureau, 66, não tem uma lembrança positiva do
Ginásio Santa Terezinha, de Porto Alegre, onde estudou até o início da década de 1960.
Ginásio Santa Terezinha, de Porto Alegre, onde estudou até o início da década de 1960.
Candidata a ser a primeira procuradora-geral da República, ela diz que, além de latim, tinha aulas de canto e de trabalhos manuais: crochê, bordado, pintura. "Eu era péssima em tudo isso. Aliás, ainda sou."
Segundo ela, as meninas eram educadas para serem doces donas de casa: "Nos ensinavam que a mulher deve contentar o marido, jamais retrucar, estar sempre arrumada, com o almoço pronto, esperando ele chegar", lembra.
Se o destino de meninas de famílias ricas ou de classe média eram os colégios de freira, a cabocla Marina Silva, 55, chegou lá por outro caminho. Alfabetizada pelo antigo Mobral, foi para a Casa Madre Elisa, em Rio Branco, já adolescente e como noviça. Ficou três anos.
Estudava no Colégio Imaculada Conceição, que ficava no mesmo terreno, e acumulava as aulas com tarefas domésticas: fazia a faxina e ainda cuidava do jardim, da horta e da cozinha, onde fazia o café da manhã às 5h, pontualmente.
Como as luzes dos quartos eram apagadas às 20h todos os dias e ela temia perder o ano, Marina alegou que a lâmpada do corredor incomodava e pregou cartolinas pretas no vidro da porta para poder estudar à luz de velas pela madrugada adentro.
A madre superiora do convento era "implicante" e fazia duras críticas aos irmãos da Teologia da Libertação. Isso fez Marina pensar: "Por que essas pessoas são más? Porque defendem a gente?".
Foi assim que conheceu a Teologia da Libertação, virou militante da sustentabilidade, filiou-se ao PT, elegeu-se senadora e foi candidata a presidente da República pelo PV, em 2010, amealhando quase 20 milhões de votos. Está fundando agora um novo partido, a Rede, para disputar a presidência novamente em 2014.
Marina continua combativa como sempre, mas é evangélica da Assembleia de Deus Novo Dia. "Foi uma conversão dentro da conversão", diz.
Todas essas mulheres foram educadas para serem dóceis e gentis senhoras da "sociedade", mas usaram o rigor e a disciplina como ferramentas para algo bem mais produtivo: intervir na realidade, disputar o poder e, cada uma a seu jeito, mudar o país para melhor.